Tenho acordado muitas vezes com o travo de um novo tipo de sonhos ainda a escorrer-me do palato. Um travo a um tempo familiar e estranho. Sonho nessas noites com episódios ou espaços da minha infância, só que em versões corrigidas e ampliadas: a quinta da família passou a incluir labirintos de divisões ocultas, prenhes de mistérios e decorações exóticas; a cidade onde nasci surge transfigurada numa metrópole aventurosa, povoada por entes magníficos, vistas sem par, vielas de mistério e enigma. Os meus amigos dos verdes anos multiplicaram-se, ganharam qualidades mil. E eu - por fim eu, protagonista inevitável - reino supremo sobre enredos que nunca me aconteceram no mundo desperto. Reparem que há por ali uma aderência débil mas tenaz à realidade: tudo começa, tudo se desenha, tudo cresce com raízes em pessoas e sítios de que me lembro bem; mas com o brilho
technicolor que só as infâncias dos outros têm, tumultuosas, mágicas e belas. Que se passa? Teorizo que a parte automática e subterrânea da minha mente, a maquinaria que trabalha em silêncio para me acolchoar a existência, já percebeu que a minha vida não vai, afinal, ter tempo para feitos dignos de registo. Aos quarenta e tal anos, o que me podia acontecer de magnífico já por certo aconteceu. E foi tão pouco. Tão pouco para encher todos os escaninhos que a memória humana nos oferece para embalsamar os dias, todos os dias. Assim, as minhas reminiscências estão a ser falsificadas e expandidas aos poucos. A ficção gentil toma o lugar da realidade desolada. Começando pelos sonhos, cada vez mais intensos, mais vivazes, mais verosímeis - tudo aquilo que falta às minhas horas de vigília. Sou como o pelintra esperançoso quando por fim se conforma com a impossibilidade de alguma vez vir a comprar a sua casa de sonho: remobila, redecora, refaz o seu pardieiro minúsculo, criando por todo o lado novos nichos, para dar a ilusão de espaços mais felizes e amplos. A minha infância está assim em obras. Por enquanto só em sonhos, por enquanto só a minha infância. Antevejo o dia em que não conseguirei distinguir a memória confiável da doce impostura. E o pior é que nem receio tal dia. Sofro a sua ausência.
De py a 28 de Fevereiro de 2007 às 23:19
Deixa estar, eu também, e é muito prático! Acho que foi anteontem, algures a meio da noite, um homem jovem, abriu-me as mãos e pôs as dele dentro das minhas, seria um sonho (?), mas sentia-se mesmo. Ora sempre gostei de dormir com as patas dadas mas não gosto que me chateiem logo pela manhã...
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