Sexta-feira, 9 de Fevereiro de 2007
Antetempo (4)


— É portanto aquilo o destino que me espera? Santo Deus!
— Não se apoquente, que o futuro pertence a Um só. Mas vem aí um tempo que já não será o nosso. Uma idade de luz onde revoadas de candeeiros como os de Sua Majestade vão iluminar dias e noites com a sua claridade inumana. Aqueles luzeiros tratarão de expulsar a escuridão, brilhando como mil sóis num eterno meio-dia. E todas as sombras do amanhã serão projectadas para trás, sobre este bosque escuro que são os nossos dias. Então, quem resistirá a tentar perscrutar a treva do passado e fazer por adivinhar como nós éramos, que sonhos acalentávamos, que visões espaventosas nos tiravam o sono? Serão legião, os olhos e imaginações voltados para nós, tentando adivinhar, fazendo força por saber, desejando tanto que as suas conjecturas cegas tenham mesmo sido a nossa verdade...
— Mas porquê eu?
— Nós, mais que homens e mulheres, somos a carne de que se faz o Mito, o músculo que desliza sob a pele da História. A tal sempre estivemos condenados, por termos a grandeza como horizonte, o Panteão por certa morada final, não a vala comum do olvido. Agora, mais que nunca, quando hesitamos na aresta aguçada que separa o tempo antigo dos séculos da Máquina; nestes dias terríveis em que tudo surge tingido com augúrios de tragédia...
— Minha mãe, minha mãe...
— Componha-se, Carlos Fernando. E de uma coisa fique certo: não viu nada, ali na parada; só fantasmas, fugitivos de imaginações inflamadas.
— Não inventei nada daquilo; disso estou certo!
— Não falo da sua imaginação, meu filho; não é essa que agora o atormenta. Pelo futuro adentro, historiadores, homens das Ciências, artistas de fantasia em chaga, quem desdenhará inquirir como foi o ocaso dos Bragança? Todos vão sonhar pesadelos que nunca nos afligiram, imaginar-nos com ânsias que nunca nos foram destinadas. E é do fadário dos Mitos que estremeçam, por fortes que sejam, ante as crenças dos seus súbditos. Alguém, num dia que há-de chegar, escreve uma página de devaneios sobre um jovem príncipe com visões de morte; aqui, neste hiato entre eras, a lenda confronta-se com a realidade e arrasta as almas mais sensíveis para um torvelinho de presságio e confusão. A essência dos monarcas, afinal, vive da memória que de deles será guardada; é isso que já hoje nos coloca tão acima dos comuns. Mas é uma fortaleza assente em subterrâneos perigosos e movediços; se preza a sua sanidade, não volte a entrar neles, Príncipe Carlos Fernando!
— Como poderei passar de novo pela parada? Ainda ali soa aquele zumbido medonho, ainda reina esta cor que nunca se fixa mas que se pega a tudo. E como poderei adormecer sem que aqueles olhos mortos me voltem a encarar?
— Os seus dias virão. Esteja certo de que vai ser Rei. Um Rei que não será um guerreiro feroz, nem um político ardiloso. Mas a História guardará de si uma memória suave, vai encontrar no seu coração a doçura de um homem justo. E talvez seja mesmo de um Rei assim que esta pobre terra precisa. De heróis pingando sangue alheio, chispando coragem para batalhas que já não há, desses anda toda a Europa farta. Durma bem. Amanhã, despertará sabendo apenas o que a Divina Providência determinou no início dos tempos. Esqueça o que julga ter visto; ignore a fantasia dos pósteros, mais as suas quimeras cruéis. Recolha agora aos seus aposentos, bom Príncipe. Amanhã, quando soar a alvorada, as velas parisienses já cá não estarão. E há-de recordar esta noite como uma fantasia incompreensível. Um sonho de fim de Verão; um sonho mau mas sem consequências. Esqueça-o. E deixe o porvir entregue às mãos de Deus.

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publicado por Luis Rainha às 04:54
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Quinta-feira, 8 de Fevereiro de 2007
Antetempo (3)


— Vá, levante-se, Carlos Fernando. Ainda há convidados na Cidadela. Que diriam eles se vissem o seu futuro Rei assim de rojo pelo chão, a chorar como uma criança? Não lhe tinha dito para não olhar muito fixamente aquela maldita claridade eléctrica?
— Minha mãe: se visse o que eu vi! Havia gritos e fumo de pólvora, gente a fugir esbaforida, gritos de gelar o sangue e... eu estava morto, morto!
— Por tudo o que é sagrado, pare de gritar. Sente-se aqui e conte tudo à sua mãe; mas sotto voce. O que viu afinal?
— Passeava pela parada, entre os candeeiros eléctricos. Divertia-me a observar como o jogo das luzes por vezes me deixava sem sombra. E dei comigo num outro lugar, ou talvez num outro tempo: mesmo ao lado da estátua de D. José, numa carruagem a avançar entre povo que aclamava e acenava feliz. Um homem de barbas negras, com cara de meter medo, avançou para nós e tirou uma carabina de baixo do seu gabão. E começou uma fuzilaria terrível, como numa batida: todos disparavam sobre nós. Comigo, estava um jovem que — soube-o então — eu amava mais do que a minha própria vida. E ele ficou em pé, enfrentando o fogo infame, de pistola em riste. A metralha chovia, e nós voávamos pelas calçadas de Lisboa, os cavalos de freio nos dentes. Logo o rapaz tombou sobre mim sem um ai, a fonte desfeita espirrando sangue às golfadas. O meu peito fora varado por duas, três balas; soube-me quase morto e só queria apressar a queda na escuridão, não ter de ver a vida a sair daquele corpo em uniforme de gala, as suas melenas louras empapadas de vermelho, os olhos cada vez mais enublados, a pele tão branca, a mão que se erguia para a minha; e eu sem a poder mover. Só queria morrer depressa, cerrar as pálpebras, partir antes dele. Mas quem era aquele jovem mártir, minha mãe? E que Inferno é este onde caí agora?
— Carlos, meu pobre filho, esqueça o que julga ter visto.
— Mas como, como?
— Olhou por demasiado tempo para aquelas velas malditas. E talvez tenha tomado algum ponche a mais, quiçá. Tudo não passou de um sonho, fraqueza de um cérebro ainda jovem, cansado por tantas emoções. Um rapaz inteligente e imaginativo, a passear sozinho numa noite de Lua cheia, nesta fortaleza carregada de História... Como não dar largas à fantasia?
— Mas nada foi só ilusão. Sei o que vi, e ainda sinto o gosto acre da pólvora e do sangue!
— Vou falar com o senhor seu pai. Os candeeiros vão sair daqui amanhã, sem delongas. Não têm lugar nesta terra. Ainda não. O tempo deles vai chegar; ou talvez já tenha chegado nos boulevards de Paris. Mas aqui, neste Reino de bruxas, crianças famélicas, crendices sem fim? Mil vezes não. Muito ainda nos falta tanto para o século deles.

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publicado por Luis Rainha às 12:25
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Quarta-feira, 7 de Fevereiro de 2007
Antetempo (2)


— Meu filho; sabe o que lhe ofereci? Aqueles peralvilhos, pares do Reino ou não, são néscios vaidosos que avaliam os outros pelas suas curtas bitolas. Julgam que lhe comprei mais um brinquedo extravagante; mais uma das minhas engenhocas sonhadoras e frágeis. Mas não. O que lhe ofertei neste dia do seu aniversário natalício é o Futuro. Dentro de meses, vamos cravar estas velas ardentes no seio de Lisboa. Muitas mais virão depois. E vai ser como o levantar de um véu odioso: a escuridão vai abandonar vielas, casas e corações. As ruas vão refulgir com a glória do Progresso. Os teatros vão rebentar de tanta cor e luz; a modorra que tolhe os passos da Nação vai encolher-se e sumir como uma praga que enfrenta por fim a cura há muito prometida. O que hoje lhe ofereço é a semente de um Portugal novo. Um Portugal que vai florescer mesmo a tempo de receber o seu Rei, D. Carlos I. Em breve, meu filho, em breve.
— Meu pai e meu Rei; não faleis assim! Vou ser vosso súbdito por muitos...
— Meu filho: a senhora sua mãe é mais sensível do que eu aos sussurros do destino. E ela sabe bem que não vou reinar por muito mais tempo. Não o confirmará, mas leio-o nos seus olhos sempre que de tais assuntos falamos. Não; renovar este pobre país vai ser tarefa sua, Carlos Fernando. E esta luz magnífica vai ser parte do legado que lhe posso deixar.
— Já o Professor José da Cunha deposita nessa invenção uma fé tremenda...
— Mais logo, depois do banquete, saídos os últimos convidados e embaixadores, vá até à esplanada. Demore-se a enfrentar a claridade temível daquelas velas. Olhe o futuro nos olhos. E mire-o sem temor, que por certo descortinará as maravilhas mil que ele nos vai trazer!

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publicado por Luis Rainha às 15:29
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Terça-feira, 6 de Fevereiro de 2007
Antetempo (1)


— Paulo Jablochkoff inventou a sua vela carbónica há menos de dois anos. Ele resolveu o problema do arco voltaico de forma engenhosa: dois longos eléctrodos de carvão, separados por uma fina camada de sulfatos de cal e de barita. Finalmente, temos uma vela capaz de durar mais de uma hora: a chispa queima-a uniformemente, graças a um gerador especial que inverte o fluxo eléctrico várias vezes por segundo.
— É tão feia a vossa luz mágica. Meu Pai não me deixa espreitar os ensaios; quer que tudo seja uma surpresa. Mas mesmo daqui vê-se o clarão trémulo, como se ali ardesse um enorme archote, bruxuleante mas tão potente... Olhe como lança sombras fortes sobre toda a Cidadela; e este zunido diabólico que se mete por todo o lado!
— Mas repare, Alteza, como a marcha do Progresso tem estugado o passo: as ruas de Paris nem há quatro meses têm as suas velas Jablochkoff. Neste momento, estão a aprestar-se para iluminar os miasmas nauseabundos de Londres. Lisboa segue por fim a par do mundo civilizado! E vai assistir ao nascer de uma nova era: noites repassadas de claridade, sem esconsos onde as velhas superstições se possam acoitar. É o toque de finados pelo Portugal Medieval, das velhas mirradas à lareira contando histórias de assustar, das mezinhas para tratar doenças comuns, da ignorância sem freio. Amanhã...
— Se a vossa vela milagreira é ainda uma novidade, por que não aguardar mais um pouco? Que a experimentem e melhorem longe daqui. Pode ser que ao menos deixe de cheirar tão mal neste forte! Não vejo o que pode sair de bom de uma máquina assim.

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publicado por Luis Rainha às 23:01
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