
Antony Gormley, Present Time, 1986
Através dos bons ofícios do
Nuno Ramos de Almeida, dei por um interessante
post do João Galamba em que se cartografam as zonas de coalescência entre ideologia e religião. Interpela-nos assim JG: “Haverá algum tipo de esperança que evite a lógica da promessa religiosa? Ou será que todas as narrativas políticas contém necessariamente um elemento de religiosidade?”
O Nuno tratou de defender a sua dama desta “vil” acusação, tentando separar a crença marxista num mundo melhor que há-de vir da corriqueira alienação religiosa; evocando alguns episódios edificantes sem atacar o princípio da coisa. Mas até o irredutível žižequiano acaba por admitir alguma dúvida: “a intenção de Marx não está despojada de uma vontade romântica e prometeica de salvar a humanidade das grilhetas da opressão.”
O sempre alerta Gibel comenta que “Benjamin, como Landauer, Bloch, Isaac Deustcher ou Lukács, revêem-se todos numa tentativa de construir um messianismo laico, Reino de Deus sem Deus, em que o proletariado surge enquanto classe-messias numa humanidade que se encaminha para o fim da opressão”.
Por seu turno, e ainda no
Metablogue, Ezequiel (presumo que não se trate do profeta) recentra o problema: “Todos as narrativas politicas contem, sem duvida, uma teologia ‘futural’, uma relaçao inevitavel com a temporalidade.”
Precisamente. E mais: esse ponto de comunhão com o sentimento religioso nem sequer é exclusivo da postura ideologizante. Claro que um edifício conceptual que tem por objectivo melhorar o mundo não pode deixar de se propagar pela esperança dos crentes; mas outros sectores do pensamento humano partilham este dispositivo. Que, aliás, está longe de ser o verdadeiro centro da maioria das religiões.
Vejamos: na interpretação de S. Agostinho, “Religião” é termo com raízes no verbo
ligare. Implicando a re-ligação ao Divino, não uma qualquer urgência de amanhãs gloriosos. Uma religião pode acarretar, na sua liturgia ou na sua praxis, a tal “futuralidade”, a promessa do momento de redenção em que os fiéis são recompensados pela sua lealdade e o Bem triunfa por fim sobre o Mal. Mas trata-se, ao fim e ao cabo, de um traço humano inevitável e banal: a esperança no destino, a vontade de melhorar a vida, a crença num devir radioso... tudo isto estará presente num monge beneditino, no ateu empedernido, no jogador do Euromilhões ou até no mais iludido adepto do Benfica. Para todos, o dia dos dias está mesmo ao virar da esquina. E não precisam da ajuda de Marx para acalentar mais sonhos.
A exaltação de um tempo que há-de vir, o diferimento da esperança, a crença num preferível estado das coisas que chegará mais depressa se a devoção for grande... estas são atitudes correntes dentro dos redis das religiões ocidentais. Mas, sendo comuns no comportamento religioso, são apenas epifenómenos, sintomas de um quadro mental alargado, nunca a sua essência. Por sinal, religiões há que até as dispensam: a crença na reencarnação, por exemplo, anula muitos desses valores, ao remeter a solução de todas as atribulações para uma outra vida, determinada pelo nosso comportamento nesta e não pela chegada de mais um Messias — e, como estas coisas andam todas ligadas, tende a dar espaço a sistemas sociais articulados sobre castas impermeáveis, pois a presente situação de cada indivíduo é sua culpa, não cabendo à sociedade remediá-la.
Em suma, o Marxismo terá em comum com o Judaísmo (só por exemplo), não um "um elemento de religiosidade" mas apenas o apelo a traços básicos da psique humana: querer fugir ao desespero de um universo sem sentido, sem evolução teleológica, sem promessa de sentido.
Depois, a citação de Herkenhoff que o Gibel trouxe à colação — “O mito ilude o homem e retarda a História. A utopia alimenta o projecto de luta e faz a História” — dá-nos uma boa rota para entender as diferenças operacionais de um e outro sistema, aplicados à vida dos seus crentes. A Religião comporta-se, no nosso tranquilo Ocidente, como uma força inercial que tende a opor-se à mudança que outros ramos do pensamento disseminam; mas não devemos esquecer que talvez o Cristianismo tenha nascido como um movimento revolucionário, de luta contra a globalização romana. Nem que o mundo islâmico hoje se transforma (para pior, parece-me) com a religião na vanguarda. Mas essas são contas para futuro rosário.
PS: nada disto, claro, invalida que a propaganda do PCP ou o discurso de muitos liberais se assemelhem, e muito, às prédicas da Igreja do Reino de Deus: acreditar em coisas inacreditáveis sem requerer amostra de prova sempre teve os seus riscos... o que nos vale é que, segundo o santo mito, o Socialismo é mesmo inevitável.